Por Guilherme Nascimento
Nos dias 2 e 3 de junho de 2025, crianças da comunidade ribeirinha do Pontal, em Marataízes (ES), viveram uma experiência formativa inesquecível durante o Projeto Esperançar: Acampamento Afro-Indígena, promovido pela Casa Roxa Cultural. Inspiradas pelas oficinas, rodas de conversa, brincadeiras e ações de acolhimento, elas escreveram uma carta coletiva, afirmando o que aprenderam sobre direitos, deveres, respeito, cultura e pertencimento.
Leia a íntegra:
CARTA ABERTA DAS CRIANÇAS RIBEIRINHAS
A gente mora no Pontal, onde o rio beija o mar.
Aqui tem rede no quintal, barco na beira e peixe fresco na a.
Nosso lugar é cheio de vento, de risada, de pé descalço na terra molhada.
É onde a gente brinca, corre, aprende e sonha.
E foi aqui, na nossa comunidade ribeirinha, que a Casa Roxa chegou com um projeto só pra gente: o Acampamento Esperançar.
Foi diferente de tudo. E a gente quer contar o que ficou guardado dentro do nosso coração.
Logo no começo, teve uma conversa importante com dois professores. O professor Iago explicou o Estatuto da Criança e do Adolescente com palavras que a gente entendia. Ele falou que criança tem direito de brincar, de aprender, de comer bem, de ser cuidada com respeito e carinho. E também que a gente tem responsabilidades: como respeitar os mais velhos, cuidar da escola, dos colegas e de nós mesmos.
A professora Thamilles falou da cultura afro-indígena. Contou sobre os povos originários, suas tradições e seus jeitos de viver. A gente aprendeu que tem muita coisa bonita que vem da nossa história e que precisa ser respeitada. Aprendemos que ser diferente é normal. E que a gente carrega em nós a força dos nossos ancestrais.
Depois, a gente foi pra cozinha com a tia Juciane. Fizemos bolinhas com granola, mel, aveia e linhaça. A gente misturou tudo com a mão! Também teve palitinhos de salada de frutas, cada um escolheu as frutas que mais gostava. Descobrimos que dá pra fazer comida gostosa e saudável — e que isso também é brincar e aprender.
Na hora da contação de histórias, com o tio Guilherme, a gente escutou histórias afroindígenas que pareciam com a gente. Tinha personagem de pele escura, de cabelo cacheado, com nomes que a gente entende. Foi como se a gente se visse dentro dos livros.
Depois, a gente desenhou tudo com a tia Sara: o rio, o mar, os barcos, os arinhos, a escola, o nosso jeito de viver. Nossos desenhos viraram uma exposição! Ficaram pendurados na parede igual em museu.
Teve também cinema com pipoca, com uma história linda chamada Yzis em Pindorama. A tia Raíssa conversou com a gente sobre a natureza, o respeito, a coragem. A gente aprendeu que pode ser protagonista da própria história.
No segundo dia, a gente fez brinquedos com a professora Thamilles. Usamos garrafa, caixa, papelão, tampinha. Tudo que ia pro lixo virou boneco, carrinho, avião. A gente criou com as mãos.
Depois, com o tio Yuri e o tio Rodolpho, foi hora de brincar muito: corrida de saco, boleba, pula-corda, amarelinha e peteca. Todo mundo podia participar — não tinha certo ou errado, era só alegria. A gente aprendeu sobre as brincadeiras dos nossos pais e avós, que estavam sendo esquecidas.
À tarde, teve dança educativa com o tio Guilherme. A gente dançou do nosso jeito, com o corpo todo. Tinha criança tímida que virou estrela. No final, a gente leu essa carta em voz alta. Todo mundo escutou.
A tia Raíssa também fotografou tudo. Gravou vídeos e entrevistou a gente. Cada criança teve a chance de contar o que mais gostou. A gente sentiu que nossa opinião importa.
A gente quer dizer que aprendeu muita coisa.
Que nossos direitos são importantes, que nossos sonhos têm valor, que a nossa cultura é linda.
A gente entendeu que ser criança não é só ter pouca idade: é ter voz, é ter espaço, é ter respeito.
E também aprendemos que a gente não tá sozinho. Tem gente que cuida da gente. A gente se sente mais forte agora.
Agradecemos à Casa Roxa, ao tio Yuri, ao tio Rodolpho, à professora Thamilles, ao professor Guilherme, ao professor Iago, à tia Juciane, à tia Sara, à tia Raíssa… todo mundo que cuidou da gente, ensinou, brincou e escutou.
A gente espera que outros meninos e meninas, de outros lugares, também possam viver um projeto assim. Porque todo mundo merece viver o Esperançar.
E a gente quer dizer mais uma coisa importante:
A gente quer que cuidem da beira do nosso rio, que protejam as águas, os peixes, os arinhos e o nosso jeito de viver.
A gente quer uma pracinha bonita pra brincar com segurança, com escorrega, gangorra e balanço — porque aqui não tem.
A gente quer merenda boa na escola e comida de verdade em casa.
A gente quer médico no postinho, remédio quando precisar, escola com bons professores, com arte, carinho e respeito.
A gente quer segurança nas ruas, mais eventos culturais, ônibus confortável e bicicleta pra pedalar.
A gente quer bola, brinquedo, rede de vôlei, espaço pra correr.
A gente quer chocolate na Páscoa, árvore enfeitada no Natal.
A gente quer quadra boa, aula de esporte, livros novos, lápis colorido.
E a gente quer emprego pros nossos pais, pra nossa família viver com mais dignidade.
A gente é criança, mas também é morador, é ribeirinho, é parte do povo.
E a gente quer ser ouvido de verdade.
Porque a gente sonha com um lugar cuidado — por nós e por vocês.
Com carinho,
As crianças do Pontal – Marataízes/ES
Com apoio das nossas famílias, educadores, professoras e da Casa Roxa Cultural.
PROJETO ESPERANÇAR: ACAMPAMENTO AFRO-INDÍGENA
02 e 03 de junho de 2025
Comunidade do Pontal – Marataízes/ES
Produção: Casa Roxa Cultural
Proponente: Thamilles Rodrigues
Apoio: Prefeitura Municipal de Marataízes
Realização: Edital nº 04/2023 – Valorização da Diversidade Cultural Capixaba – Linha 01: Culturas da Diversidade – via FUNCULTURA/SECULT-ES.
O Acampamento Esperançar foi realizado em alusão ao Dia Mundial do Brincar (28 de maio) e em celebração à recente criação da Semana Estadual do Brincar, instituída pela Assembleia Legislativa do Espírito Santo.
A proposta conecta o brincar à arte, à ancestralidade e ao cuidado, reconhecendo sua importância como direito fundamental da infância. A iniciativa integra a linha de culturas para a infância, muitas vezes esquecida nos editais e nas políticas públicas.
Ao valorizar o brincar, a expressão livre e a escuta sensível das crianças, o projeto reafirma o papel da cultura como ferramenta de formação cidadã.
Realizado na comunidade ribeirinha do Pontal — um território de identidade tradicional e popular, mas ainda marcado por desigualdades — o projeto teve foco nas infâncias afro-indígenas, ribeirinhas e periféricas. O Esperançar reafirma que as crianças de territórios vulneráveis têm direito a sonhar, criar, aprender e serem ouvidas com dignidade.
A carta, escrita a partir da escuta ativa das crianças durante o projeto, é um marco inédito na história da comunidade do Pontal e da Casa Roxa. Reafirma o poder da infância como agente de expressão, memória e transformação social.
O projeto, proposto por Thamilles Rodrigues, com realização da Casa Roxa Cultural e apoio do FUNCULTURA/SECULT-ES e do Ministério da Cultura (LPG), trouxe dignidade, afeto, formação e arte para crianças de territórios periféricos e ribeirinhos.
Que esta carta ecoe — e inspire.
